Todo mundo vira santo depois que cai na idade,
Mas ninguém conta o que fez no tempo da mocidade.
Eu mesmo conheço gente que inventou de ser crente
Depois de ter aprontado meio mundo de maldade.
E com vergonha da verdade quer esconder o passado,
Pedro Quengo e Malasrte, João Grilo e Cancão de Fogo
À vista de muita gente não fizeram meio jogo.
Por isso eu não incrimino, presepada de menino,
Que eu fui criança também e sei o que menino faz
Longe da vista do país, sem cabresto de ninguém,
Indá hoje eu tenho as marcas de uma surra que levei.
Por causa de tia Joana e de uma que eu lhe aprontei,
Veneno de caninana perdia pra tia Joana
Em todos os cinco sentidos.
Ficou velha, e não casou, mas o mundo
Arranjou os dez ou doze maridos, pra falar da vida alheia.
Nasceu privilegiada, gasgita da venta,
Grande, caxexa, malajanbrada, magra que só um pávio,
A casa cheia de fio que arrumava do xodó.
Como acabei de dizer, nunca casou pra não ter
Direito a um marido só.
O mundo não pior do que tia Joana,
Tinha o terreiro quaiado de peru, pato e galinha,
Mas nem vendia e nem dava, e quando a raposa pegava
O frangote ou um capão, tia Joana esbravejava.
Batia o pé e jurava que tinha sido um irmão.
Eu estava com 12 anos quando vi meu pai contar
Que ouviu dizer: que em 50 o mundo ia se acabar.
Como faltavam dois meses, eu não pensei duas vezes,
Chamei Ana e disse: mana"Ana, prepare a cozinha,
Que eu vou ver uma galinha na casa de tia Joana".
Vai ver galinha com quê, se você não tem dinheiro
E tia nem dá nem vende criação do seu terreiro?
Só pode ser brincadeira, é não! Amole a peixeira,
Pegue o sal lave a panela, bote água pra ferver,
Que hoje nós vamos ter galinha de cabidela.
Botei o pé na estrada cheguei na casa de tia,
Bati na porta, ela veio e perguntou o que eu queria.
Ai eu fui lhe contando, é que os rádios, tão falando
Que o mundo vai se acabar sexta-feira uma hora.
E como eu gosto da senhora, vim correndo lhe avisar
Tão dizendo que uma estrela maior do que uma serra vai cair,
E vai queimar tudo que tem sobre a terra, e as pessoas
Fuxiqueira, mal carater, trambiqueira são as primeiras
Da frente, desse povo linguarudo que pensa que sabe tudo,
Não fica nem a semente, e tem mais, tão avisando
Que quem quiser se salvar reze pra que essa estrela vá
Cair dentro do mar e depois com a pobreza, reparta
Toda a riqueza ou bem mal adquirido.
Se não há volta é pesada, São Migué vai dar,
Lapada do braço, ficado doído Ave-Maria,
Meu Deus, não diga menino, Zefa abra-o,
Oratório forre a mesa e tire um hino
Como não sabiam ler e me botaram pra fazer
A vez do religioso e o meu livro de oratória
Foi a capa da história do pavão misterioso.
Comecei dizendo assim: "Vamos rezar, minha gente,
Pra essa estrela de fogo não cair no continente
E pras três noites de escuro não ser um golpe
Tão duro pra nossa população.
E quem enricou roubando partir, o que está sobrando
Pra ganhar a salvação. Faz pena ver se acabar
Tanta galinha, capão, e tanta gente com fome
Sem ter direito a um pão.
Tanto guiné, tanto pato, tanto ganso bico chato,
Tanta galinha pedrês e a dona tão caridosa,
Tão amiga e tão bondosa perder tudo de uma vez.
Tia Joana olhou pra mim, e disse pode parar já que não tem jeito,
Mesmo e o mundo vai se acabar, faça o que você quiser.
Pegue tudo que puder, leve coma, venda ou dê,
Faça o que achar melhor, se tudo vai virar pó.
Guardar a criação pra quê? Peguei três galinhas gordas,
Dois patos e um capão, um peru e dois guiné, o galo de estimação.
Botei dentro do balaio e partir rápido, como um raio,
Rasgando uma nuvem cheia e às custas de tia Joana.
Durante aquela semana houve festa na aldeia,
Mas quando passou o tempo do mundo se acabar,
Tia Joana apareceu com vontade de brigar,
Fervendo igual Coca-Cola, me suspendeu pela gola,
E me responsabilizou por suas perdas e danos,
Morreu com mais de 100 anos e nunca mais me abençoou.